sexta-feira, 2 de maio de 2025

CRÔNICAS DE AVELAR SANTOS

 



À OESTE DA FOZ DO RIO STYX


Todos foram tomados de surpresa com a partida repentina daquele perverso magistrado, cujo pérfido coração parara de bater naquela madrugada fria, chamado que fora, às pressas, a prestar contas de seus atos tresloucados, no plano do além, às vésperas do julgamento de um homem inocente, pela Corte que presidia, que, muito embora pesasse sobre os seus ombros uma carga excessiva de acusações, nada havia sido devidamente comprovado, nos autos do absurdo processo kafkiano instaurado, mas, mesmo assim, apesar das incontáveis manifestações populares a favor do réu, ele fora perseguido, implacavelmente, pelo crudelíssimo inquisidor, que, na sua loucura, achava-se um deus, desses vingativos, exigindo, assim, ainda, cada vez mais, sacrifícios humanos para saciar sua fome insana de poder, pouco se importando se a sua tirania estivesse tão escancarada, que até aqueles seus pares, que, por medo ou subserviência, nunca ousaram confrontá-lo, em público, faziam-no agora. 


Quando aquele homem decrépito, de andar trôpego, cabisbaixo, de olhar vazio, chegou, finalmente, aos portões do Hades, após ter sido transportado por Caronte, pelo Rio Styx, em nada lembrava o juiz impiedoso e arrogante de outrora, parecendo mesmo que envelhecera mil anos, que, na sua falta de compaixão, fizera tremendas injustiças, suplantadas, talvez, em termos de perversidade, por aquelas atrocidades perpetradas por Tomás de Torquemada, frade dominicano espanhol, que, no auge da Santa Inquisição, promoveu uma caçada sem tréguas contra judeus, bruxas e hereges, cuja ferrenha atuação acabou fazendo com que a sua fama percorresse os quatro cantos da Europa.  


Geralmente, baseado em denúncias de fraca sustentação, os investigados eram presos e submetidos a interrogatório nos calabouços da Inquisição. Enquanto os açoitamentos e torturas eram deflagrados, Torquemada passava o tempo sussurrando as suas preces, com os olhos a revirarem loucamente nas órbitas, agindo sem nenhuma clemência com aqueles condenados, que suplicavam-lhe por suas vidas, porquanto, através de seus métodos cruéis de investigação cerca de 10 mil pessoas teriam sido condenadas à fogueira. 


Muito assustado, Sua Excelência observou que estava num lugar sombrio,  misterioso, e que alguém, de aspecto bastante soturno, já o esperava, junto ao  grande portão das almas empedernidas, para dar-lhe as calorosas boas vindas, tendo ao seu lado um cão de três cabeças, feroz, que ao vê-lo adentrando,  ali, rosnou muito forte, fazendo com que aquele infeliz ficasse transido de grande pavor.


Com os olhos chispando longas faíscas de alegria por receber, no reino das trevas, aquele hóspede tão ansiosamente aguardado, pelos espíritos maus, Mefistófeles, fingindo distinta cortesia, saudou o visitante com uma voz cavernosa que causou arrepios e gelou de medo aquele obtuso togado, cuja empáfia, que assustara a muitos, desaparecera por completo, assim, como por encanto, não restando, tampouco, um fio que fosse do grande novelo de lã do orgulho extremado que pautara a existência terrena daquele humano vil.


Ao transpor os tenebrosos umbrais do inferno, guiado, com desdém, por seu altivo plenipotenciário, que assobiava, feliz, seguindo por um caminho ermo, cheio de pedras incandescentes que feriam enormemente os seus pés, ora descalços, causando-lhe profunda dor, que beirava às raias da agonia, aquele homem que em vida fora desprovido totalmente do senso de misericórdia, viu-se, de repente, numa tristeza sem fim, em profundo pranto, a chorar amargamente, feito criança pequenina ao se ver sozinha, longe dos pais, ao se dar conta, enfim, do horrendo destino que o esperava, na eternidade, fruto de suas maldades hitlerianas, quiçá, próprias de um psicopata, que se contentava  em causar sofrimento àqueles dos quais não viesse a gostar.  

   

Eis que ao subir uma ladeira íngreme, ladeada por dois imensos pântanos  contendo lava, que descia continuamente de um vulcão situado no alto de uma montanha, ouviu, distintamente, vindos dali, gritos lancinantes, que lhe deixaram paralisado de terror, provenientes daqueles infelizes que se debatiam, aos milhares, naquelas águas sulfurosas em que estavam permanentemente  mergulhados, querendo, mas em vão, sair a custo daquele grandioso suplício.


Aquela visão aterradora da aflição sem fim daquelas almas infelizes que gemiam naquele pavoroso tormento, clamando, aos brados, por piedade, foi demais até mesmo para Sua Excelência, acostumado, antigamente, na sua vileza de algoz, a se deliciar com o sabor da desgraça alheia, mas que, naquele momento, mal podia andar para acompanhar os passos firmes do seu anfitrião, que gargalhava rouco, sem parar, dos infortúnios do visitante, por que suas pernas pareciam mesmo, estranhamente, ter criado  raízes, que se alargavam cada vez mais, fixando-o  àquele chão lamacento.


Nisso, cérbero, atiçado pelo seu dono, correu ligeiro na direção daquele homem, que dava pena, agora, de se ver, enlouquecido que ele estava em observar um tamanho horror à sua volta, mordendo-o pelo corpo inteiro, arrancando dele gemidos tão assustadores que calavam fundo as profundezas, fazendo com que ele saísse de sua letargia e continuasse a caminhar pela trilha que o conduziria aos seus aposentos, preparados com zelo pelo mestre. 


Eis que aquele pobre trapo humano chega, afinal, ao topo de um escarpado morro, de onde nada se podia divisar, porquanto imerso na total escuridão, e, após passar por uma perigosa ponte sobre um lago transbordante de ácido, notou que havia, num lugar descampado, três prédios colossais, sobressaindo-se, um deles, dentre os outros, por ter uma estátua de granito, de gosto bastante duvidoso, postada bem à sua frente, pintada com batom uma frase que  lhe fez lembrar algo: “Perdeu, Mané”.   


E o diabo sorrindo prazerosamente ao perceber a palidez extrema que se estampava, nesse instante, no rosto desfigurado daquele cruel magistrado,  ordenou, com voz tonitruante, que ele entrasse, nas suas dependências, e se dirigisse, ao iluminado salão principal, onde permaneceria, doravante, em degredo perpétuo, lendo e relendo as estapafúrdias sentenças que um dia proferira, admoestando-o, contudo, que olvidasse logo fazer justiça a todos aqueles pobrezinhos que ele afrontara um dia com sua prepotência e frio coração.


Ao sair dali, gargalhando como nunca dantes fizera, o diabo apagou a luz.


AVELAR SANTOS

A\S CAMOCIM-CE

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