O PORTAL DO TEMPO
De pé, sozinho, no velho balaústre, contemplo o deus Aton erguer-se majestosamente do seu trono celeste, e, em seguida, tingir de ouro as águas calmas da baía, na maré vazante, enquanto as gaivotas voejam, pelo cais, buscando talvez os navios que perderam suas bússolas e não voltam jamais, distendendo o manto da paz na singela saudação que elas fazem ao novo dia – e a cidade, enfim, vai acordando de mansinho.
Devido à luminosidade intensa que me ofusca as retinas, por alguns momentos, fecho os meus olhos cansados - e eis que um turbilhão de gratas memórias assoma ligeiro à mente, catapultando-me, como se fora num sonho de bom quilate, para o Camocim de antigamente onde revejo, com imensa saudade, tantas pessoas conhecidas, que já partiram para as estrelas, além de um punhado de coisas simples do cotidiano, que transbordaram o meu cálice da vida, que me fizeram ser tão feliz, aqui, que nem ousaria dizer o quanto, com receio de não saber encontrar nunca mais a trilha secreta que me conduziu ao paraíso.
As pedras toscas dos caminhos, que guardam tantas lembranças, alinhavavam as ruas centrais da urbe, traçadas na perspectiva de um tablado de xadrez, que convergiam todas elas para a orla, permitiam que os poucos veículos automotores existentes à época conseguissem, com muitos solavancos, chegar sãos e salvos aos seus destinos, sendo que o Jeep, talvez por seu estilo inconfundível e robustez mecânica incomum, destacava-se por si só nesta cena provinciana, mormente aquele “cara alta”, de cor verde musgo, do sr. Edmundo Fontenele, acompanhado de perto pelas caminhonetes da Chevrolet e pela imponente Rural, especialmente aquela azul turquesa do sr. Hindenburg Aguiar, que, por vezes, passeava com a família, pela Engenheiro Privat, passando defronte à minha casa, bem devagar, como se quisesse me fazer um convite para um breve passeio nas redondezas.
Sentado no batente, ao lado de meus irmãos, aguardando o trem chegar, ficava olhando o carro distanciar-se, com o motor assobiando forte, preciso como um relógio suíço, rompendo a fronteira da visão, mas, sempre, na minha imaginação infantil, eu me permitia aceitar a gentil carona, aboletando-me, todo prosa, no banco de trás, que mais parecia uma cama de tão grande, admirando, pelos espessos vidros, a bela paisagem citadina que eu conhecia tão bem como a palma da mão.
Aos domingos, pela manhã, invariavelmente, ouvia-se, ainda ao longe, o matraquear possante da Toyota do Pe. Benedito, que avançava célere, que, sem jogar búzios no ar, acertava o caminho de nossa residência, indo pegar o meu pai para levá-lo à igrejinha de São Francisco, recém-construída com a força da coletividade, um presente dos céus para aquela gente humilde da Brasília, cheia de fé em Deus, que esperava pacientemente por dias melhores, onde ele costumava assistir a missa e ajudava o sacerdote, com desvelo, nas leituras bíblicas, na companhia do sr. Valmir Rocha, massapeense de nascimento, grande maestro e cidadão camocinense, autor do hino mais belo da Terra da Luz, o nosso, que reverbera sublime poesia em cada verso esculpido como joia rara.
Nisto, enquanto os últimos preparativos eram finalizados para a partida do japonês rumo ao templo do Senhor, viam-se pescadores levando caranguejos gigantes, nos remos, que se vergavam de tanto peso, dirigindo-se, apressados, ao mercado, onde a distinta clientela já os esperava com impaciência denotada numa babel de vozes dissonantes.
E o que falar, Paizinho Celestial, daquelas tardes inesquecíveis em que eu, depois de ter lido avidamente o gibi das aventuras de Tarzan, O Rei das Selvas, protetor da floresta e dos povos originários, ficava, só, à sombra das goiabeiras amigas, no quintal, ouvindo a passarada em festa de arromba tecendo cantos de amor, observando, com atenção, os desenhos das nuvens, tentando encaixar cada um deles nas formas geométricas complexas que passara a conhecer na Escola de D. Mimi.
À noitinha, impreterivelmente às sete horas, o vaso do silêncio da urbe era quebrado em mil pedaços, pelos alto-falantes da Voz de Camocim, para deleite dos antigos conterrâneos, que, desde cedo, encontravam-se postados nas imediações da Praça da Estação - e não viam a hora de solicitarem ao Gerardo Brito (GB) suas páginas musicais favoritas, endereçando-as, gentilmente, às namoradas ou às ardentes amantes.
Um pouco mais adiante, na Rua 24 de Maio, próximo ao comércio do sr. Nenen Lúcio, no mesmo horário, os Sonoros Pinto Martins, para gáudio de seus inúmeros ouvintes, lançava ao ar o seu pacote musical do dia, com destaque especial para uma gama de canções românticas que iam ao encontro daqueles apaixonados de plantão que peruavam à volta.
Quando eu era presenteado, no mês, com a entrada do Cine João Veras, porquanto a família era numerosa e não havia como nós irmos ao cinema, conjuntamente, por conta dos recursos serem escassos, era com imensa alegria que procurava me informar, com bastante antecedência, olhando as tabuletas estilizadas que respiravam arte, colocadas em pontos movimentados da city, sobre o filme que iria passar, naquela oportunidade, no mais das vezes uma fita de faroeste.
Por volta das onze da noite, a Usina de Força, situada na antessala da Rua do Egito, encravada num mar de areia que não tinha fim, de onde se divisava as imponentes Oficinas da RVC, anunciava, através de três sinais consecutivos, que iria dormir, cansada que ela estava de tanto trabalhar, instando que nós fôssemos, logo, para o aconchego do lar.
Acontece que a boemia, acomodada nos bares ou nos cabarés, não ligava em absoluto nada se a luz elétrica faltava porque sabia que a petromax entraria de imediato em ação espantando o fantasma da escuridão, e, naquele lusco-fusco reinante, sob o olhar complacente das estrelas, ela varava a doce madrugada cantando, dançando ou bebendo.
Hoje, em cada esquina, em cada canto, eu vejo sombras esparsas nas paredes, onde outrora havia tantas vozes e tanto riso, e ouço, calado, o lamento do vento que traz consigo um bouquet de perdidas recordações tão ternas, cálidas, que ecoam na minh’alma vazia fazendo-me soluçar.
Quando o amanhã chegar sem mim, minha amada, depois da última viagem, vou pedir ao Altíssimo o milagre de poder deixar sempre aberta a porta do meu coração, para ti, para que eu possa contemplar a beleza de tuas velas boiando ao luar, levando-me uma vez mais a sonhar.
AVELAR SANTOS
A\S CAMOCIM-CE
Nenhum comentário:
Postar um comentário