A dança sagrada do vento
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Rosamaria Susanna Barbára oiasusanna@virgilio.it
dança do vento "Je danse l'autre donc jé suis"
Leopold Sendar Senghor
Este artigo [1] pretende relatar a importância
fundamental da dança e da musica no ritual do candomblé e em específico
mostra o sentido simbólico da dança do orixá Oiá-Iansã.
O candomblé è uma das religiões afro-brasileiras que mais manteve as
caracteristicas de uma religião africana: a adivinação, o
sacrificio/oferenda, o transe e a dança com a musica. Salvador de Bahia
é considerada no Brasil o berço desta religião pela quantidade de
população de origine africanas que vive na cidade e no estado, o 80%
das pessoas é discendente dos escravos que foram deportados nos seculos
paassados nesta região. Existem mais de oito mil terreiros, casas, de
candomblé só na cidade de Salvador, por isso a cidade foi chamada a
Roma negra por uma grande mãe de santo, a finada Mãe Aninha que fundou
em 1910 um dos mais tradicionais terreiros da Bahia, o Axé Opó.Afonjá.
A pesar da discussão entre estudiosos sobre a colocação do candomblé
nas religiões politeistas, existe um grande debate sobre este assunto,
pois muitos antropologos acham ser um tipo de monoteismo (Carneiro,
1947), existe um principio primo, Olorum ou Olodumarê que originou a
terra. Os orixás foram enviados por ele para construir a terra, a
natureza e os seres humanos. Por causa de uma interdição não respectada
os dois mundos o aiyê, a terra, e o orum, o mundo dos espiritos, foram
separados, mas por causa da tristeza dos seres humanos e dos deuses que
não podiam mais se encontrar, teve origine o candomblé com a finalidade
de juntar de novo os dois mundos nas festas que periodicamente são
organizadas para os orixás.
As culturas tradicionais não-ocidentais e as culturas minoritárias
européias propõem o corpo em um sentido simbólico, não no sentido da
psicanálise que fala dos símbolos para sublinhar uma outra separação,
aquela entre consciente e inconsciente, mas no sentido de eliminar a
fronteira que separou a alma do corpo, colocando-os junto. (Galimberti,
1993:13). A África, o oriente, as culturas indígenas, as culturas
mediterrâneas [2] colocaram sempre uma grande atenção e cuidado ao
corpo percebendo-o como um todo em relação com o mundo no qual vive.
Por isso durante o transe o corpo da filha ou filho-de-santo torna-se o
próprio orixá superando a dicotomia cartesiana corpo/espirito,
forma/conteúdo. Mas esse corpo além de experiência vivida é também uma
superfície de escritura, no qual a sociedade escreve o texto das suas
leis. Cada cicatriz, cada enfeite é um traço inapagável, um sinal que
faz do corpo uma memória. Por isso as sociedades não-ocidentais
iniciavam e iniciam os adolescentes ou os seus membros à vida social da
comunidade com vários tipos de rituais, desenhando ou marcando o corpo
com pinturas ou incisões, porque o corpo tem que ter o sinal do grupo,
o traço da passagem da juventude à maior idade ou da entrada em um
grupo esotérico.
Por isso a estética ritual possui uma importância fundamental seja na
preparação da festa, seja nos trajes litúrgicos. É uma estética
padronizada em modelos fixos e transmitidos no tempo que nos falam da
história e da memória do grupo. A arte ritual funciona como
representação do invisível, sendo o seu objetivo aquilo de chamar as
forças
imateriais.
Arte e religião
As
civilizações africanas [3] são caracterizadas por uma visão holística e
simbólica da vida. Cada ser vivente e não é ligado ao outro numa
corrente infinita de sentidos nos quais cada elemento existe em função
do outro, participando assim à dinâmica do cosmo, em uma eterna procura
e reestabelecimento de harmonia e de equilíbrio.
É só a arte que tem o poder de traduzir com as formas o sagrado. Como sugere Marchiano (1977:217):
“A forma...., é o único meio humano que permite a transcendência) do
nível sensível, a não identificação com aquilo que muda, a conversão do
estético no teorético”.
Na tradição do candomblé, o conceito do belo ocidental não existe, mas
como sublinha Luz (1995), os Nagô definem o belo com a palavra odara,
que significa bom, útil e bonito. Esteticamente um ser humano ou um
objeto é belo porque traz consigo uma determinada qualidade e
quantidade de axé e realiza assim uma comunicação entre ele e a
comunidade.
Os estudiosos da arte e das civilizações africanas, como a historiadora
Welsh Asante (1985) e Thompson (1974) reconhecem na dinâmica o aspecto
mais importante e profundo da estética dessas culturas, seja na dança,
seja na arte visível e gráfica. A dinâmica é um dos conceitos
fundamentais da ontologia africana para a qual existe a possibilidade
da mudança e da transformação na vida por meio da comunicação com o
mundo espiritual, aquele dos orixás.
Outro conceito fundamental na filosofia da existência africana é a
importância do grupo, para que a comunidade viva cada fiel deve
participar seguindo o papel que lhe pertence a nível espiritual e
terreno.
A Asante explica os critérios estéticos das artes africanas subjacentes
a dança e a música. Primeiro entre todos a polirritmia: cada parte do
corpo movimenta-se com um ritmo diferente, os pés seguem a base
musical, acompanhados pelos braços que equilibram o balanço dos pés. O
corpo pode ser comparado a uma orquestra que, tocando vários
instrumentos, harmoniza-os numa única sinfonia. Outra característica
fundamental é o policentrismo que indica a existência no corpo e na
musica de vários centros energéticos, assim como acontece no cosmo. A
dança africana é um texto formado por várias camadas de sentidos. Esta
dimensionalidade é entendida como a possibilidade de exprimir através e
para todos os sentidos. No momento que a sacerdotisa dança para Oxum,
ela está criando a água doce não só através do movimento, mas através
de todo o aparelho sensorial. A memória é o aspeto ontológico da
estética africana. É a memória da tradição, da ancestralidade e do
antigo equilíbrio da natureza, da época na qual não existiam
diferenças, nem separação entre o mundo dos seres humanos e os dos
deuses. A relevância da obra artística é dada pela transmissão da
harmonia, que liga algo dentro e algo fora, o corpo e o espírito, a
natureza e o homem. Mas sem a inspiração divina o escultor, o
dançarino, o musico não poderiam criar o "momento artístico-religioso".
A repetição do padrão-musical, não é uma simples repetição, mas a
criação daquela energia que os fieis estão invocando. A repetição dos
movimentos produz o efeito da intensificação que leva ao encontro com a
divindade, facilmente observado nos rituais. O mesmo ato ou gesto é
praticado num número infinito de vezes, para dar à ação um caráter de
atemporalidade, de continuação e de criação continua. Outra
característica é a ligação com a terra, vivenciada como elemento
materno. Nas danças africanas o contato contínuo dos pés nus com a
terra é fundamental para absorver as energias que deste lugar se
propagam e para enfatizar a vida que tem que ser vivida agora e neste
lugar, ao contrario das danças ocidentais performadas sobre as pontas a
testemunhar a vontade de deixar este mundo para alcançar um “outro”.
O corpo sagrado
O homem está em contato contínuo e harmônico com a natureza, que fala
com os mortais através das suas vibrações, captadas pelo corpo, por
isso ele não é negado, mas vive o seu compromisso com o mundo. Os seus
ritmos são acompanhados de uma experiência sensual contínua. Eis por
que o corpo é decorado para mostrar a sua importância e resguardá-lo
dos ataques mágicos externos, protegendo as aberturas com decorações ou
jóias, como os brincos cheios de ‘pendentes’.
O corpo sagrado é o templo por excelência, é simbolicamente o "trono"
e, por isso, o das divindades (típica é a representação de Hísis
sentada) é sempre representado (Neumann, 1981:101) como: “um trono em
si”. Portanto as cadeiras são uma área sagrada do corpo humano, onde a
bacia e as nádegas representam a fertilidade.
Centro da irradiação simbólica portanto é o corpo, expressão das
energias da natureza e em unidade com o mundo natural que o abrange.
Daí a sua função de busca das energias cósmica e da expressão delas,
vivenciando-as.
Sendo o corpo humano uma cópia das formas e das energias do cosmo, os
próprios elementos ( fogo, ar, água, terra e mato) juntam-se segundo
arquétipos diferentes. As palavras do biólogo Pelosini (1994:94)
aplicam-se bem à concepção africana do corpo humano :
“...o universo (macrocosmos) e o homem (microcosmos) são criaturas
similares, que obedecem às mesmas leis como um tipo de fantástico e
perfeito relógio cósmico que marca harmoniosamente os ritmos”.
O corpo é então um centro de forças opostas que devem estar em
equilíbrio e em relação complementar. Na mesma maneira a pessoa pode
ser percebida como o resultado do equilíbrio das diversas partes do
corpo, símbolo da comunicação entre o mundo natural e aquilo
sobrenatural.
Mas o corpo adquire um sentido também na interação com o espaço e com o
tempo. Espaço atravessado pelas energias da natureza que criam campos
energéticos que colocam cada elemento em relação com o outro, segundo o
principio fundamental da existência africana que propõe uma visão de
mundo ligada a comunicação entre todos os seres humanos e não humanos.
A dança cosmica
Shiva criou o universo dançando, assim como nos mitos gregos Eurinone,
Deusa de Todas as Coisas, emergiu nua do Caos, mas não vendo substância
em redor onde firmar os pés, apartou do céu o mar, dançando solitária
por sobre as suas ondas. (Graves, 1990:31). Nas lendas dos Iorubás, os
orixás também gostavam muito de dançar durante as festas ou para atrair
alguém.
Entendem-se assim que não só no pensamento africano, mas também no
oriental e grego o universo é percebido em contínuo movimento, formado
por ondas vibratórias organizadas no "verbo" da Divindade Suprema que
expressa-se na respiração com os dois movimentos básicos da natureza
viva: expansão e contração. Movimentos fundamentais da vida do cosmo,
das plantas, dos animais e do homem. Belinga diz (1993:11):
"Nas nossas tradições o ‘verbo’ possui três elementos que o determinam
e que permitem a sua colocação seja entre as formas artísticas, seja na
comunicação interpessoal. Três são as formas nas quais o "verbo"
manifesta-se: a palavra, que caracteriza a expressão interior e
exterior do pensamento; a música que expressa a beleza; e por fim a
dança, que é em função seja dos ritmos dos instrumentos seja do ritmo
interior do ‘verbo’ ”.
Sendo o candomblé de tradição oral, a visão de mundo é passada por meio
do corpo através de um longo percurso de aprendizagem e de incorporação
dos fundamentos religiosos que o propõe como instrumento de memória
para a comunidade e de sabedoria para o fiel. Por isso a dança e a
música associadas ao mito, tem a função de uma literatura nas
sociedades de tradição oral e possuem uma pluralidade de sentidos: a
história da etnia, a visão do mundo, o ethos do grupo, a organização da
sociedade e as crenças religiosas e várias funções como aquela de
fortificar o grupo e o conhecimento da comunidade sobre ela mesmo, além
de expressar a identidade individual e espiritual da dançarina.
Esta pluralidade de sentidos é expressa por meio do símbolo principal
da dança: o corpo da sacerdotisa-dançarina, um microcosmos, no qual
encontra-se todas as energias da natureza em um equilíbrio único e
específico de cada indivíduo, espelho das energias do macrocosmos. A
dança sagrada contempla dois aspectos: um lado exterior e um lado
interior. O primeiro é transmitido por meio dos movimentos, as roupas
litúrgicas e os objetos sagrados. O segundo é a transformação interna
em algo outro, diferente da identidade cotidiana, é o duplo espiritual
que encontra-se no orum.
O segundo aspecto exterior são as roupas litúrgicas, os materiais com
os quais são costurados nos contam as fontes de subsistência (por
exemplo uma roupa de conchas mostra que aquela comunidade vive de
pesca) e nos indica qual seja a sua posição na hierarquia social
(através da posição de algumas partes do vestido percebe-se se são
mulheres iniciadas ou não e há quanto tempo; se são filhas de uma
divindade feminina ou não, etc.).
O terceiro aspecto, aquilo dos objetos sagrados relata: a qualidade do
orixá, a sua ligação mitológica e a sua função cósmica, por exemplo o
abebé, um leque e a espada de Iemanjá relatam seja o lado guerreiro da
deusa seja a sua ligação com o mundo feminino relatado por meio da
forma redonda do abebé e da cor de prata do mesmo que lembra a lua, o
elemento do feminino por excelência.
O aspecto interior da dança é a metamorfose que acontece dentro da
sacerdotisa ao longo do transe. Este fenômeno, do qual muito se
escreveu, mas sem alcançar uma explicação exaustiva devido ao fato de
ser uma experiência de fé, intima e preciosa e por isso dificilmente
compreendida por aqueles que não a experienciaram.
Tanto a música, quanto a dança que a acompanha expressam o caráter do
orixá e os acontecimentos da sua vida. As histórias míticas, as
qualidades, as virtudes e as falhas dos orixás são passadas aos fiéis
através das letras das cantigas. A concentração e a busca interior
permitem expressar a própria música e a própria gestualidade, que é
única e pessoal e que corresponde à "qualidade" [4] de cada orixá.
Assim, por exemplo a música de Oiá é caracterizada por grande rapidez,
agressividade, determinação e grande variabilidade, percebe-se assim a
personalidade da deusa que expressa o elemento ar em movimento. O uso
da polirritmia no toque de Oiá tira a possibilidade de encontrar uma
pausa no ritmo e dá ao toque a sensação da impossibilidade de botar os
pés no chão. Enquanto a musica de Iemanjá é caracterizada por
movimentos lentos e amplos, que expressam o movimento das ondas do mar.
Por sendo em ritmo binário a sensação é aquela de um movimento
circular, expressado também na dança.
Na festa pública do candomblé são reconhecíveis dois tipos de dança:
a) um primeiro tipo, no começo da festa, o xirê (literalmente
“brincar”), onde se canta para todos os orixás um mínimo de três
cantigas, acompanhadas pelas danças. Cada orixá possui cantigas e
gestualidades particulares, pertencentes só a ele. Essas danças são
previsíveis, porque são executadas ainda em estado consciente e seguem
um padrão fixo, a depender do orixá dono da festa. São danças de
invocação e de preparação, poderia ser equiparada a uma meditação
dinâmica. Os movimentos são de dimensão pequena e chamam-se “dançar
pequenino”. Servem para concentrar as energias, mas também para as
pessoas se centrarem e para prepararem-se a receber o orixá;
b) um segundo tipo, são danças realizadas durante o transe; é o próprio
orixá que dança nesse momento, seguindo o ritmo sagrado dos tambores.
Nessa segunda parte, o andamento da festa não é fixo porque, apesar de
existir um padrão, não se pode saber exatamente quais serão as
coreografias que os orixás irão dançar, pois o andamento depende de
varias causas visiveis e não.
Cada orixá possui um toque característico que o identifica mais varias
cantigas com ritmos diferentes que são executados com outras frases
coreuticas. Então cada divindade possui um proprio repertório de danças
e um repertório próprio de cantigas nas quais são relatados os fatos
míticos da sua vida. Assim que cada casa de candomblé possui um mínimo
de 500 cantos liturgicos, por isso è muito difícil ter uma idéia clara
do desenvolvimento do ritual [5]. O orixá mostra ao público a sua
história mitológica, redistribuindo a energia vital, axé e trazendo o
mundo sagrado de volta ao cotidiano.
A dança do vento
As danças dos orixás são diferentes entre elas. O sentido profundo das
danças, como do ritual em geral não pode ser completamente descoberto,
porque existem vários significados estratificados e alguns são
perceptíveis apenas pelos iniciados.
Nas coreografias de Oiá [6], os passos são pequenos e rápidos, ela è o
elemento ar em movimento, enquanto os braços movimenta-se com força
afastando qualquer um da sua frente. O corpo pode ser dobrado para o
chão, com uma carga muito ameaçadora, mais freqüentemente é direcionado
para o alto. Como diz Augras (1983:153):
“pode-se observar muitos detalhes que sugerem a fusão, na figura de
Oiá-Iansã, de várias divindades, de origens diversas”.... A Oiá
relacionada com Oxossi, “... foi provavelmente uma deusa agrária,
ligada aos cultos da fecundidade e do boi”.
Oiá viveu em várias épocas, por isso possui ligações com vários orixás
masculinos. O fato de ser uma mulher-búfalo deixa bem claro a sua
ligação com uma era pré-histórica antiga e a sua relação com Oxossi,
rei do mato e com Ogum da mesma estirpe de Odê, o caçador. A sua
ligação com Xangô originam-se dá descoberta do fogo que ela doa aos
homens. A ligação com Ogum é esclarecida também pelo seu trabalho junto
com ele na forja, para manipular o ferro. Enfim, sabe-se que de Omolu,
a livre deusa recebe o poder sobre os Eguns [7], que, em algumas
lendas, seriam os próprios filhos de Oiá-Iansã. Todos esses aspectos e
outros mais são expressados nas suas danças nas quais existem os
seguintes aspectos gerais:
1) - um movimento circular no começo para delimitar o espaço sagrado,
no qual ela concentra as energias da natureza: o ar, a água e o fogo.
Essa rotação é feita também com movimentos dos braços que viram com o
corpo todo, e simbolizam o ar que, em movimento, torna-se vento e,
sempre mais rapidamente, furacão e tempestade (água);
2) - um movimento com linhas quebradas e continuamente mutante de
direção. Como me explicou uma filha de santo, “o ar está em todo lugar,
em cima, embaixo, de lado, em qualquer lugar”. Por seguir o movimento
do ar, Oiá-Iansã encontra sempre novas direções, possui o espaço
sagrado e ocupa-o agressivamente;
3) - um movimento nervoso, com impulsos súbitos e rápidos, que descreve a eletricidade e a impaciência dessa energia;
4) - um movimento fluido e leve, que expressa o ar leve e a doçura do orixá, levando os espíritos dos mortos ao orum.
O primeiro movimento pode ser entendido a partir da discussão anterior
sobre a roda sagrada. Aponta a construção de um espaço mágico, onde se
concentra e onde se fazem concentrar as forças da natureza. Também o
redemoinho que Oiá-Iansã faz sobre si mesma è o movimento do elemento
ar. Ela ocupa muito espaço, sobretudo ao nível horizontal. Às vezes,
abre os braços, puxa a cabeça para trás e roda sobre si mesma,
desenhando uma espiral com o próprio corpo. Deixa claro, através da sua
postura firme, que precisa de muito espaço e que é dona deste. A
utilização do espaço é diferente da observada nos outros orixás
femininos, Iemanjá e Oxum, que dançam com movimentos de menor dimensão
horizontal. Quando Iemanjá locomove-se como onda, por exemplo, ela
ocupa um espaço mais em vertical e também seu movimento é um andar e um
vir para si mesma, é um movimento mais introspectivo, mais ligado à
interioridade, enquanto Oiá-Iansã movimenta-se para o exterior, ela é
mais ligada à ação.
Quanto ao terceiro aspecto, Oiá-Iansã movimenta-se em diagonal. Anda
pelo barracão, sem uma meta precisa, qualquer coisa nova a seduz e
provoca um repentino câmbio de direção. Esse movimento transmite o
frêmito e a curiosidade de Oiá, que está sempre a procura de algo ou de
alguém. Pode parecer quase desesperada, nesse seu andar sem meta e com
tanta energia. Oiá é um orixá jovem e guerreiro, que abre os caminhos,
lutando e limpando as marcas dos Eguns em qualquer lugar.
O último aspecto é a leveza que ela expressa quando afasta os mortos,
transporta algo, ou abre o caminho para os seus devotos. Nessa sua
qualidade, ela parece mais flexível. Aqui demonstra a sua generosidade,
transportando as almas ao orum, para uma nova vida.
Os níveis do seu corpo no espaço, níveis que, do baixo passam para o
alto, expressam sensualmente o elemento ar. Nem os pés estão postos no
chão. É muito diferente, por exemplo, o nível da dança de Iemanjá, que
utiliza mais o nível médio e baixo. Para fazer um exemplo, quando
Iemanjá dança representando a onda do mar, o corpo permanece mais
nesses dois níveis. Ela expressa o lado feminino da fecundidade, da
reprodução, do interno e, por isso, é mais chegada ao nível baixo, aos
órgãos sexuais e da reprodução, ao útero, enquanto Oiá é mais ligada ao
nível médio e alto por que ela não tem relação com os órgãos internos,
mas com a aventura, com a ação livre, com o externo.
Analisando os níveis espaciais, pode-se reconstruir toda a história mitológica de Oiá.
- Quando ela dobra-se para o chão, é a guerreira, que se prepara a
lutar ou a mulher-bufalo. Nessa fase, as lendas contam a sua vida
afetiva com Ogum e Oxossi, orixás do mato;
- Quando ela levanta-se de nível, representa a sua ligação com Xangô, a magia do fogo;
- Quando o nível é alto, representa o ar, e as lendas contam a sua
ligação com os espíritos dos mortos, que ela transporta no orum.
Ela toma consciência do espaço dinamicamente, andando, explorando,
procurando. Enquanto Iemanjá é mais estática, para, tem o andamento
devagar de uma grande rainha, constrói ao seu redor círculos
concêntricos que vão sumindo aos seus limites. Este uso diferente do
uso do espaço, provavelmente, origina-se dos diferentes povos que
cultuavam as duas divindades. Segundo Leroi-Gourhan (1977: 130):
“A mitologia dos caçadores organiza-se ao redor de um espaço
itinerante, como o caminho dos astros ou dos heróis, enquanto a
mitologia dos agricultores-sedentários organiza-se ao redor de um
espaço radiante, como o paraíso sobre uma montanha com a árvore da
sabedoria ao centro e quatro rios que vão aos limites do mundo”.
As danças de Iemanjá são muito diferentes, são constituídas por
movimentos amplos, os pés posam mais no chão, a demostrar o equilíbrio,
enquanto os braços movimenta-se com grande fluidez. O corpo está
levemente dobrado para o chão em uma forma redonda a lembrar a forma
materna da deusa e a sua disponibilidade em acolher e em conduzir, o
corpo todo expressa o movimento rítmico das ondas, mas também o
mistério da água que traz do fundo do mar para as superfícies as
riquezas e o encanto do mar.
Os desenhos das danças
As danças são estruturadas em coreografias executadas no xirê, ou
durante a incorporação. São muitas e diferentes e só uma longa
convivência permite conhece-las e descreve-las. Como pude observar, os
movimentos contam e mostram as palavras das cantigas e as
características da personalidade dos orixás. A troca da coreografia
acontece quando tira-se uma outra cantiga. A forma coreográfica de
algumas danças repetem-se, por isso tentarei encontrar o sentido
simbólico delas.
Primeira entre todas é a forma do círculo, a antiga roda sagrada, que
pode ser encontrada em várias culturas; de fato, em todas as danças
extáticas, os dançarinos rodam em torno de um centro, ao tempo em que
rodam também sobre si mesmos num duplo movimento de rotação e
translação.
A forma do círculo tem uma grande importância na África, Neumann
(1981:214), simbolizando a Grande Mãe, que em si contém os elementos
masculinos e femininos. Por isso as coreografias referentes as
divindades da Água: Oxum e Iemanjá possuem um movimento circular.
É interessante observar que as danças extáticas rodam em sentido
anti-horário, esta direção é tomada em quase todas as danças sagradas
do mundo, talvez porque abre a brecha entre sagrado e profano,
simbolizando a volta à origem.
As danças começam em um grande e lento círculo que vai diminuindo ao
longo do ritual com voltas sobre si, durante as incorporações, a
simbolizar uma direção para o interno. Como o círculo, a espiral é um
símbolo antiquíssimo. A espiral aparece nas rotações que as
filhas-de-santo fazem sobre si mesmas, quando incorporam ao longo do
ritual e nas danças de Exu.
A espiral é o símbolo da comunicação (Santos:1977; Pelosini:1994).
Assim, quando o orixá possui o corpo da filha-de-santo, realiza-se uma
comunicação entre o homem e a divindade. Enquanto o corpo vira sobre si
mesmo, a energia do orixá penetra no corpo. Não é por acaso que Exu, a
divindade da comunicação [8], roda sobre si mesmo desse modo. A espiral
expressa a evolução a partir de um centro; simboliza a vida, porque
indica o movimento numa unidade de ordem ou, ao inverso, a permanência
do ser na mobilidade. Durand (1972) sugere que, a espiral, simboliza a
permanência do ser, através das flutuações da mudança da vida”.
A espiral poderia simbolizar a procura do próprio espírito ao longo do
difícil caminho místico. Partindo de um ponto firme, alcança, com
voltas o mundo do sagrado. Não é por acaso que, no candomblé, a espiral
encontra-se no okoto, associado a Exu, orixá que expressa a dinâmica da
vida, o movimento interno na criação e na expansão do mundo. Exu é o
princípio dinâmico da evolução e o mensageiro entre o homem e a
divindade, sem ele nada pode ser cumprido.
Conclusões
Os versos de Senghor esclarecem a importância da dança, a dança é a
possibilidade de conhecer o outro, dançando exprimem-se o lado mais
profundo e misterioso do ser e também liga-se na essência do outro. Um
outro que pode ser encontrado dentro de nós dançando-o e pode ser
olhado como um espelho. Eis o conceito do "duplo", a
sacerdotisa-dançarina está criando o outro e também neste processo de
criação-incorporação o vivência intensamente em si mesma e adquire a
sua pulsação-ritmo interna.
A dança tem um sentido particular porque é a expressão da divindade e
da identidade mais verdadeira da filha ou do filho-de-santo. Cada um
possui a própria "identidade-sonora", o próprio duplo no orum, que o
fiel encontra no momento da possessão e que aprende a reconhecer e a
conhecer através da dança e da música. E pelo corpo que o ser humano
começa o caminho do conhecimento e o papel por ele desempenhado no
cosmo e na sociedade. Sendo no corpo que o ser humano vivência a
própria experiência da vida e junta as várias informações simbólicas
sobre o mundo, é no corpo divino, que vivenciando as energias sagradas,
ele pode se comunicar com o sagrado, pode juntar o lado sensível com
aquele material, porque não dados cognitivos, mas as cores, as formas,
os sentimentos internos dão forma á matéria.
Os ritmos dos atabaques levam o fiel numa viagem que o transforma,
porque toma posse do tempo que flui e do espaço que não tem mais lugar
definido, o fiel volta ao tempo da origem. A percussão dos atabaques,
como sustenta Duplan, é a materialização do tempo e tomar consciência
do tempo é conhecer a nossa linhagem, a nossa historia. Cada ser humano
é um anel de uma corrente infinita que originou-se com o nosso
ancestral-mítico. O corpo age no mundo sagrado através dos movimentos
da dança e interage com o espaço e com o tempo. Espaço que refere-se a
uma tipografia sagrada onde cada objeto, cada planta remetem a outros
planos da existência.
Agradecimientos
Um agradecimento especial e muito carinhoso a Mãe Stella de Oxossi, a
ebomi Elpidia, mãe Ainda e ebomi Odebúa, minha orientadora e a toda a
comunidade do Axé Opô Afonjá que me aceitou e me ajudou na pesquisa e
no meu caminho espiritual. Não posso esquecer mãe Cecy do Axé Opô
Aganju, mãe Beata do Ilé Koisan da Boca do Rio e mãe Teresinha do Ilé
de Oxumarê da Liberdade que são a minha familia na Bahia.
[1] A autora fundamenta o artigo sobre o resultado de uma pesquisa de
campo de três anos, realizada em Salvador - Bahia finalizada ao
Mestrado em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal da Bahia
e em vários workshop em Expression Primitive realizados em Paris e
Milão em 1995-1997.
[2] Nesse propósito vale a pena lembrar os estudos do antropólogo
italiano De Martino (1961; 1973) sobre o tarantismo na Apulia, uma
região da Itália do sul.
[3] Apesar dos contextos diferentes, um o do Candomblé baiano, o outro
o continente africano que possui uma variedade imensa de culturas e
civilizações, existem alguns elementos das culturas africanas que
encontram-se também no candomblé.
[4] O orixá geral divide-se em varios tipos dele, chamadas no Brasil
qualidades que são os caminhos da divindade e que são partes da sua
própria biografia mítica.
[5] Para Ter uma ideia mais clara do desenvolvimento do ritual veja-se
Barbàra, As Danças das Aiabás, corpo, dança e corrrtidiano das mulheres
de candomblé, Tese de Doutoramento na Uspi, Universidade do Estado de
São Paulo, maio 2002.
[6] O orixá Oiá-Iansã é o orixá do vento e da tempestade, a esposa
querida de Xangô. As suas historias mitologicas são belissimas e
riquissimas em simbolos, exaltam a liberdade. Veja-se Barbára, A dança
do vento e da tempestade, monografia de Mestrado da Ufba, Universidade
Federal da Bahia, 1995
[7] Os Eguns são os espiritos dos mortos.
[8] Comunicação neste caso não significa só o ato de comunicar, mas
também o ato de transportar, porque Exu é o próprio mensageiro e
transporta as oferendas aos orixás.
Outubro 2004
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