A noite de 22 de dezembro [de 1876] ficou memorável no Oratório. Foi um
pouco antecipada a hora da oração. Reuniram-se no locutório os
estudantes, os artesãos e todas as pessoas da casa. Dom Bosco tinha
prometido falar no domingo anterior, mas não pudera fazê-lo. Imagine-se a
expectativa geral! Subiu à cátedra, saudado por palmas entusiásticas,
como acontecia sempre que dava daquele modo a "boa noite" à comunidade
inteira. Fez sinal de que ia falar e imediatamente fez-se completo
silêncio.
Na noite em que estive em Lanzo,
chegada a hora de repousar, aconteceu-me que tive o seguinte sonho. É um
sonho que não tem nenhuma relação com outros sonhos...
São coisas muito estranhas. Mas para meus filhos não
tenho segredos; abro-lhes inteiramente o coração. Pensai o que quiserdes
desse sonho. Como diz São Paulo, quod bonum est tenete [conservai o que
é bom], se alguma coisa encontrais nele que seja de proveito para vossa
alma, sabei aproveitar-vos dela. Quem não quiser crer, que não me
creia, pouco importa; mas ninguém jamais zombe das coisas que vou dizer.
Peço-vos, ainda, que não o conteis nem o comuniqueis
por escrito aos que não são da casa. Aos sonhos pode-se dar importância
que sonhos merecem, e os que não conhecem nossa intimidade poderiam
formar juízos errôneos, vendo as coisas de modo diferente do que são na
realidade. Não sabem eles que sois meus filhos, e que sempre vos digo
tudo o que sei, e às vezes até mesmo o que não sei (risos gerais). Mas o
que um pai manifesta a seus filhos queridos para o bem deles, deve
ficar entre o pai e os filhos, e não passar adiante. E ainda por outro
motivo: é que em geral, quando se contam essas coisas fora, ou se
desfiguram os fatos ou se conta apenas uma parte deles, e esta mesma mal
entendida; de onde nasce dano, pois o mundo desprezaria o que não deve
ser desprezado.
Deveis saber que ordinariamente os sonhos se têm
dormindo. Ora, na noite de 6 de dezembro, enquanto eu estava no meu
quarto, não recordo bem se lendo, ou se dando voltas pelo aposento, ou
se me havia já deitado,comecei a sonhar.
Logo me pareceu estar sobre uma elevação de terreno,
ou colina, à beira de uma imensa planície cujos confins a vista não
alcançava, pois se perdiam na imensidão; era toda azulada como o mar
calmo, embora o que eu visse não fosse água; parecia um cristal límpido e
luminoso. Sob meus pés, por trás de mim e dos lados via uma região à
maneira de um litoral à margem do oceano.
Largos e gigantescos caminhos dividiam aquela
planície em vastíssimos jardins de indescritível beleza, todos
repartidos em bosquezinhos, prados e canteiros de flores, de formas e
cores variadas. Nenhuma das nossas plantas pode nos dar idéia daquelas,
embora tenham com elas alguma semelhança. As ervas, as flores, as
árvores, as frutas, eram vistosíssimas e de belíssimo aspecto. As folhas
eram de ouro; os troncos e ramos, de diamante, correspondendo todo o
resto a essa riqueza. Seria impossível contar as diferentes espécies; e
cada espécie e cada indivíduo resplandecia com uma luz própria.
No meio daqueles jardins e em toda a extensão da
planície eu contemplava incontáveis edifícios de ordem, beleza,
harmonia, magnificência e proporções tão extraordinárias, que para a
construção de um só deles me parecia não seriam suficientes todos os
tesouros da terra.
Eu dizia para mim mesmo: "Se meus meninos tivessem uma destas casas, como gozariam, que felizes seriam e com quanto gosto viveriam nela!" Isto pensava eu vendo externamente os palácios. Qual não deveria ser sua magnificência interior!
Enquanto contemplava extasiado tão estupendas
maravilhas que adornavam aqueles jardins, eis que chega a meus ouvidos
uma música dulcíssima, de tão agradável e suave harmonia que nem posso
dela dar-vos adequada idéia. As músicas do Padre Cagliero e de Dogliani
nada têm de musical se comparadas àquela! Eram cem mil instrumentos,
produzindo cada qual um som diverso do outro, enquanto todos os sons
possíveis difundiam pelos ares suas ondas sonoras. A estes, somavam-se
os coros de cantores.
Vi então uma multidão de pessoas que se encontrava
naqueles jardins e se regozijava alegre e contente. Uns tocavam, outros
cantavam. Cada voz, cada nota, produzia efeito de mil instrumentos
reunidos, todos diferentes uns dos outros. Ao mesmo tempo ouviam-se os
diversos graus da escala harmônica, desde os mais baixos até os mais
agudos que se possam imaginar, mas todos em perfeita harmonia. Ah! para
descrever-vos tal harmonia não bastam comparações humanas.
Via-se, pelo rosto dos felizes habitantes do jardim,
que os cantores não só experimentavam extraordinário prazer em cantar,
mas ao mesmo tempo sentiam imenso gozo em ouvir cantar os demais. Quanto
mais um cantava, mais se lhe acendia o desejo de cantar, e quanto mais
ouvia, mais desejava ouvir.
Era isto o que cantavam:
Salus, honor; gloria Deo Patri
omnipotenti!.., Auctor saeculi, qui erat, qui est, qui venturus est
iudicare vivos et mortuos in saecula saeculorum [Saudação, honra e
glória a Deus Pai onipotente! Autor do século, que era, que é e que virá
a julgar os vivos e os mortos para todos os séculos dos séculos].
Enquanto ouvia atônito essa celestial harmonia, vi
aparecer uma imensa multidão de jovens, muitos dos quais eu conhecia,
pois tinham estado no Oratório e nos outros nossos colégios; mas me era
desconhecida a maior parte. A multidão interminável se dirigia a mim. À
sua frente vinha Domingos Sávio, e logo atrás dele vinham Padre
Alasonatti, Padre Chiala, Padre Giulitto e muitos sacerdotes e clérigos,
cada um deles conduzindo uma seção de jovens.
Eu me perguntava a mim mesmo:"Estou dormindo ou estou acordado?" Batia as mãos uma na outra e me tocava no peito, para certificar-me de que era realidade o que via.
Chegada diante de mim toda aquela multidão, parou à
distância de oito ou dez passos. Brilhou então um relâmpago de luz mais
viva; cessou a música e fez-se um silêncio profundo. Todos os jovens
estavam tomados pela maior alegria, que lhes transparecia no olhar, e em
seus rostos se via a paz de uma felicidade perfeita. Olhavam-me com um
suave sorriso nos lábios e parecia que desejavam falar, mas não falavam.
Adiantou-se Domingos Sávio só, alguns passos, e ficou
tão próximo a mim que se eu tivesse estendido a mão certamente o teria
tocado. Calava-se e me olhava sorrindo. Que belo estava! Suas vestes
eram realmente singulares. Caía-lhe até os pés uma túnica alvíssinia,
coberta de diamantes e toda bordada de ouro. Cingia-lhe a cintura uma
ampla faixa vermelha recamada com tantas pe dras preciosas que uma quase
tocava a outra; e se entrelaçavam em desenho tão maravilhoso,
apresentando tanta beleza de cores, que eu, ao vê-lo, me sentia fora de
mim pela admiração. Pendia-lhe do pescoço um colar de flores raras, mas
não naturais; parecia como se as pétalas fossem de diamantes unidos
entre si sobre hastes de ouro; e assim era tudo o mais. Essas flores
refulgiam com luz sobre-humana mais viva que a do sol, que naquele
instante brilhava com todo o esplendor de uma manhã de primavera. Elas
refletiam seus raios sobre o rosto cândido e corado de modo
indescritível, dando-lhe uma luz de modo tão singular que nem se
distinguiam bem suas várias espécies. A cabeça, tinha-a cingida com uma
coroa de rosas; os cabelos caíam-lhe sobre os ombros em ondulantes
cachos, dando-lhe um ar tão pulcro, tão afetuoso, tão encantador, que
parecia... parecia... um Anjo!
Ao pronunciar estas últimas palavras, parecia que Dom
Bosco estava fazendo grande esforço para encontrar as expressões
adequadas; e o fez com um gesto indescritível e um tom de voz que
comoveu a todos; pareceu ter-se cansado nesse esforço para encontrar os
termos que exprimissem inteiramente sua idéia. Após breve pausa,
prosseguiu:
Também resplandeciam de luz todos os outros que o
acompanhavam. Vestiam-se de modos diversos, mas sempre maravilhosos; uns
mais, outros menos ricos; uns de uma, outros de outra forma; num,
dominava determinada cor; noutro, dominava outra; e cada uma das vestes
tinha um significado que ninguém saberia compreender. Mas todos tinham
na cintura uma faixa vermelha.
Eu continuava a observar e pensava: Que significará
isso? Como vim parar neste local?... E não sabia onde me encontrava.
Fora de mim, temeroso pela reverência que tudo aquilo me inspirava, não
me atrevia a dizer nada. Também os outros continuavam silenciosos. Por
fim, Domingos Sávio abriu a boca.
- Por que estás aí mudo e como que
aniquilado? Não és mais aquele homem que de nada tinhas medo, que
enfrentavas intrépido as calúnias, as perseguições, os inimigos, as
angústias e os perigos de toda espécie? Onde está tua coragem? Por que
não falas?
A duras penas respondi, quase balbuciando:
- Não sei o que dizer... Mas, não és tu Domingos Sávio?
- Sim, sou; já não me reconheces?
- E como te encontras aqui? – acrescentei, sempre confuso.
Sávio então respondeu com afeto:
- Vim aqui para falar-te. Tantas
vezes nos falamos na Terra! Não recordas quanto me amavas, quantas
provas de amizade e quantas demonstrações de benevolência me deste? E eu
por acaso não correspondi a teus desvelos? Como era grande minha
confiança em ti! Por que, então, tremes? Coragem! pergunta-me alguma
coisa.
Recobrando então ânimo, lhe disse:
- Tremo, porque não sei onde me encontro.
- Estás no local da felicidade – respondeu Sávio – onde se gozam todas as alegrias, todas as delícias.
- É este, pois, o prêmio dos justos?
- Não, por certo. Aqui não se gozam os bens eternos, mas só, ainda que em medida grande, os temporais.
- Mas então são naturais todas essas coisas?
- Sim, se bem que embelezadas pelo poder de Deus.
- E a mim, que me parecia que isto era o Paraíso! – exclamei.
- Não, não, não! – respondeu Sávio. Nenhum olho mortal pode ver as belezas eternas.
- E essas músicas – prossegui perguntando – são as harmonias de que gozais no Paraíso?
- Não, não, já te disse que não!
- São sons naturais?
- Sim, são sons naturais, aperfeiçoados pela onipotência de Deus.
- E esta luz que sobrepuja a luz do sol, é luz sobre natural? É a luz do Paraíso?
- É luz natural, embora avivada e aperfeiçoada pela onipotência divina.
- E não se poderia ver um pouco de luz sobrenatural?
- Ninguém pode vê-la enquanto não
chegue a ver a Deus sicut est [como Ele é]. O menor raio dessa luz tira
na no mesmo instante a vida de um homem, porque não é suportável pelas
forças humanas.
- E poderia haver uma luz natural ainda mais bela do que esta?
- Se soubesses! Se visses somente um raio de luz natural elevada a um grau superior a este, ficarias fora de ti.
- E não se pode ver ao menos um raio dessa luz de que falas?
- Sim, podes vê-lo; terás a prova do que te digo; abre os olhos.
Já os tenho abertos – respondi.
- Olha bem no fundo desse mar de cristal.
Levantei a vista, e apareceu de repente no céu, a uma
distância imensa, uma instantânea centelha de luz, sutilíssima como um
fio, mas tão brilhante, tão penetrante, que meus olhos não puderam
resistir. Fechei-os e lancei um grito tão forte que despertou o Padre
Lemoyne (aqui presente), que dormia num quarto próximo. Assustado, ele
me perguntou na manhã seguinte o que me acontecera de noite, para estar
assim tão agitado. Aquele fiozinho de luz era cem milhões de vezes mais
claro que o sol, e seu fulgor bastaria para iluminar todo o universo
criado.
Após alguns instantes, consegui abrir os olhos e perguntei a Domingos Sávio:
- E isso que vi, será talvez um raio divino?
Sávio respondeu:
- Não é luz sobrenatural, se bem que,
comparada com a terrestre, seja tão superior em brilho. Não é senão luz
natural, assim avivada pelo poder de Deus. E ainda que imaginasses uma
imensa zona de luz semelhante à centelhazinha que viste lá no fundo
rodeando todo o mundo, nem por isso formarias para ti uma idéia dos
esplendores do Paraíso.
- E vós, de que gozais, pois, no Paraíso?
- Ah! É impossível dizer-te. O que se
goza no Paraíso nenhum homem mortal pode sabê-lo enquanto não deixar
esta vida e se reunir a seu Criador. Basta dizer que se goza ao próprio
Deus.
Entretanto, eu já me recobrara plenamente de meu
primeiro aturdimento, e contemplava absorto a beleza de Domingos Sávio, e
com franqueza lhe perguntei:
- Por que tens essa veste tão alva e
deslumbrante? Calou-se Sávio, sem dar mostras de querer responder. Mas o
coro retomou então suas harmonias e cantou, acompanhado de todos os
instrumentos:
Ipsi habuerunt lumbos praecinctos et
dealbaverunt stolas suas in san guine Agni [Eles tiveram os rins
cingidos e purificaram suas vestes no sangue do Cordeiro].
- E por que – voltei a perguntar quando cessou o canto – essa faixa vermelha na tua cintura?
Tampouco desta vez Sávio respondeu, mas antes fez
sinal de que não queria fazê-lo. Então, o Padre Alasonatti em solo se
pôs a cantar:
Virgines enim sunt, et sequuntur Agnum quocumque ierit [São virgens e seguirão o Cordeiro aonde quer que vá].
Compreendi então que a faixa encarnada, cor de
sangue, era símbolo dos grandes sacrifícios feitos, dos violentos
esforços e do quase martírio sofrido para conservar a virtude da pureza;
e que, para manter-se casto na presença do Senhor, ele teria estado
pronto a dar a vida se as circunstâncias o houvessem requerido; e que
também era símbolo das penitências, que limpam a alma da culpa. A
brancura e o esplendor da túnica significavam a inocência batismal
conservada.
Mas eu, atraído pelos cantos e contemplando todas
aquelas falanges de jovens celestiais ordenados atrás de Domingos Sávio,
lhe perguntei:
- E quem são estes que te rodeiam?
E, dirigindo-me aos demais, lhes disse:
- Como é que estais todos tão refulgentes?
Sávio continuou calado, e todos os jovens se puseram a cantar:
Hi sunt sicut Angeli Dei in caelo [Estes são como Anjos de Deus no Céu].
Notava entretanto que Sávio parecia ter preeminência
sobre aquela multidão, que a respeitosa distância se encontrava, uns dez
passos atrás dele; e então lhe disse:
- Diz-me, Sávio: sendo tu o mais
jovem entre os muitos que te seguem e dos que morreram em nossas casas,
por que vais tu assim adiante deles e os precedes? Por que és tu que
falas e eles se calam?
- Eu sou o mais velho de todos.
- Não, muitos outros te superam em anos.
- Eu sou o mais antigo do Oratório –
repetiu Domingos Sávio – porque fui o primeiro a deixar o mundo e ir à
outra vida. Além disso, legatione Dei fungor [ pro mandado de Deus].
Essa resposta me indicava o motivo da visão. Ele era embaixador de Deus.
- Então – lhe disse – falemos do que neste instante mais nos importa.
- Sim, e pergunta-me logo o que ainda
desejas saber. As horas passam, e poderia acabar o tempo que me foi
concedido para falar-te; e já não mais me poderias ver.
- Ao que parece, tens algum assunto de suma importância para me comunicares.
- Que irei dizer-te eu, miserável
criatura? – disse Sávio com profunda humildade. – Recebi do alto a
missão de te falar, e por isso vim.
- Então – exclamei – fala-me do
passado, do presente e do futuro de nosso Oratório. Fala alguma coisa de
meus queridos filhos, fala de minha Congregação.
- A respeito desta, muito teria que te comunicar.
- Revela, pois, o que sabes: fala-me do passado.
- O passado recai todo sobre ti.
- Terei feito alguma das minhas... [faltas]?
- Quanto ao passado, digo-te que tua Congregação já fez muito bem. Vês lá abaixo aquele número interminável de jovens?
- Vejo-os – respondi. – Como são numerosos! E como parecem felizes!
- Pois olha o que está escrito na entrada do jardim.
- Está escrito Jardim Salesiano.
- Pois bem – prosseguiu Sávio – todos
eles foram salesianos, ou foram educados por ti, ou contigo tiveram
alguma relação, foram salvos por ti ou por teus sacerdotes e clérigos,
ou por outros que encaminhaste pela via de sua vocação. Conta-os, se
fores capaz. Seu número, porém, seria cem milhões de vezes maior se
maiores tivessem sido tua fé e tua confiança no Senhor.
Lancei um suspiro, sem saber o que responder a tal
reprimenda, mas disse de mim para comigo: daqui para a frente procurarei
ter essa fé e essa confiança. Depois, perguntei:
- E o presente?
Sávio me apresentou um magnífico ramalhete que tinha
nas mãos. Nele havia rosas, violetas, girassóis, gencianas, lírios,
sempre-vivas e, entre as flores, espigas de trigo. Ofereceu-mo e disse:
- Observa!
- Vejo, mas nada entendo – respondi.
- Dá este ramalhete a teus filhos
para que possam oferecê-lo ao Senhor quando chegar o momento; procura
que todos o tenham; a ninguém lhe falte nem o deixe tirar. Podes estar
certo de que com ele terão o suficiente para ser felizes.
- Mas, que significa esse ramalhete de flores?
- Consulta a Teologia; ela te dirá e te dará a explicação.
- A Teologia, estudei-a eu, mas não saberia como tirar dela o significado do que me apresentas.
- Pois tens estrita obrigação de saber tudo isso.
- Vamos, tira-me da minha ansiedade, explica-me tu!
- Vês estas flores? Representam as virtudes que mais agradam ao Senhor.
- Quais são?
- A rosa é símbolo da caridade; a
violeta, da humildade; o girassol, da obediência; a genciana, da
penitência e da mortificação; as espigas, da comunhão freqüente; o lírio
indica a bela virtude da qual está escrito: Erunt sicut Angeli Dei in
caelo, a castidade. E a sempre-viva significa que todas essas virtudes
devem durar sempre, ela simboliza a perseverança.
- Ora bem, meu caro Sávio: tu, que
durante toda a tua vida praticaste todas essas virtudes, diz-me: o que
foi que mais te consolou na hora da morte?
- Que te parece que possa ser? – respondeu Sávio.
- Foi talvez ter conservado a bela virtude da pureza?
- Não; não é só isso.
- Alegrou-te talvez teres a consciência tranqüila?
- Isso é bom, porém não é o melhor.
- Por acaso teu consolo terá sido a esperança do Paraíso?
- Também não.
- Pois então! O haver entesourado muitas boas obras?
- Não, não!
- Então, qual foi teu consolo na
última hora? – perguntei, entre confuso e suplicante, vendo que não
conseguia adivinhar seu pensamento.
- O que mais me confortou no transe
da morte foi a assistência da poderosa e amável Mãe do Salvador. Diz
isto a teus filhos: que não se esqueçam de invocá-La em quanto estão em
vida. Mas, se queres que possa responder-te mais algo, apressa-te!
- Quanto ao futuro, que me dizes?
- Com respeito ao futuro, no próximo
ano de 1877 terás que sofrer uma grande dor; seis mais dois dos que te
são mais caros serão chamados por Deus à eternidade. Mas consola-te,
pois serão transplantados do campo do mundo para os jardins do Paraíso.
Serão coroados. Não temas, O Senhor te ajudará e te mandará outros
filhos igualmente bons.
- Paciência! E no que se refere à Congregação?
- No tocante à Congregação, fica
sabendo que Deus te prepara grandes acontecimentos. No ano próximo
surgirá para ela uma aurora de glória tão esplêndida, que iluminará como
um relâmpago os quatro cantos do mundo; do oriente ao poente, do sul ao
norte. Grande glória lhe está preparada. Tu deves zelar para que o
carro no qual vai o Senhor não seja afastado pelos teus fora de suas
guias e de seus caminhos. Se teus sacerdotes o souberem bem conduzir e
se forem dignos da alta missão que lhes foi confiada, esplêndido será o
futuro, e infinitas serão as pessoas que salvarão. Mas com uma condição:
que teus filhos sejam devotos da Santíssima Virgem e saibam, todos os
que vivam em tua casa, conservar a virtude da castidade, tão agradável
aos olhos de Deus.
- Queria agora que me falasses algo sobre a Igreja em geral.
- Os destinos da Igreja estão nas
mãos de Deus Criador. O que Ele determinou em seus infinitos decretos
não te posso revelar. Tais arcanos reserva-os Ele exclusivamente para
Si, e deles não participa nenhum dos espíritos criados.
- E sobre Pio IX?
- O que posso dizer-te é que o Pastor
da Igreja não terá que sustentar ainda longos combates nesta terra.
Poucas são as batalhas que ainda lhe resta vencer. Dentro de pouco será
arrebatado de seu trono e o Senhor lhe dará a merecida recompensa. O
resto já é bem sabido. A Igreja não perece... Tens ainda algo que
perguntar?
E quanto a mim? – lhe disse.
Oh! se soubesses por quantas
vicissitudes terás ainda que passar!... Mas apressa-te, porque muito
pouco tempo me resta para falar contigo.
Estendi então com ardor as mãos para segurar aquele santo filho; mas suas mãos pareciam aéreas e nada pude tocar.
Que loucura! Que estás fazendo? – me disse Sávio sorrindo.
Temo que te vás – exclamei —. Mas, não estás aqui com teu corpo?
Com o corpo, não. Recuperá-lo-ei no último dia.
Mas, que são, então, esses traços que me fazem ver em ti a figura de Domingos Sávio?
Quando por permissão divina uma alma
separada do corpo aparece diante de algum mortal, apresenta-se com a
forma exterior do corpo que em vida animou, com todas as suas feições
exteriores, embora muito embelezadas, e assim as conserva até que volte a
unir-se a ele, no dia do Juízo Universal. Então o levará consigo para o
Paraíso. É por isso que te parece que tenho mãos, pés e cabeça; mas tu
não podes segurar-me porque sou puro espírito. Esta é só uma forma
exterior pela qual me podes conhecer.
Compreendo – respondi – mas escuta.
Ainda uma pergunta? meus jovens estão todos no reto caminho da salvação?
Diz-me alguma coisa para que possa bem dirigi-los.
Os filhos que a Divina Providência te confiou podem ser divididos em três categorias. Vês estas três listas? Olha-as!
E me estendia uma.
Olhei a primeira; encabeçava-a a palavra invuinerati
[ilesos], e continha o nome daqueles aos quais o demônio não pôde ferir,
e que não mancharam a inocência com culpa alguma. Eram em grande número
esses sadios, e os vi todos. A muitos já conhecia, outros era a
primeira vez que via, e certamente virão ao Oratório nos anos futuros.
Caminhavam direitos por um caminho estreito, apesar de serem alvo de
flechas, espadagadas e lançaços que por todos os lados choviam sobre
eles. Essas armas formavam como que uma sebe ao longo das duas bordas do
caminho, e os combatiam e molestavam sem entre tanto feri-los.
Então Sávio me deu a segunda lista, cujo título era
Vulnerati [feridos], ou seja, os que haviam estado na desgraça de Deus
mas, uma vez postos em pé, haviam curado suas feridas arrependendo-se e
confessando-se. Eram em maior número que os primeiros, e haviam sido
feridos no sendeiro da vida pelos inimigos que os flanqueavam durante
sua viagem. Li a lista e vi todos. Muitos iam curvados e desanimados.
Sávio tinha ainda na mão a terceira lista.
Encabeçava-a a epígrafe: Lassati in via iniquitatis [caídos na via da
iniqüidade]. Nela estavam escritos os nomes dos que estavam na desgraça
de Deus. Eu estava impaciente para conhecer o segredo, pelo que estendi a
mão. Mas Sávio me disse com vivacidade:
Não, espera um momento e ouve. Se
abrires essa folha, dela sairá um tal mau cheiro que nem tu nem eu
poderemos suportar. Os Anjos têm que se retirar com asco e horror, e o
próprio Espírito Santo sente repugnância pela horrível hediondez do
pecado.
Mas como pode ser isso – observei – se Deus e os Anjos são impassíveis? Como podem sentir o mau cheiro da matéria?
Quanto melhores e mais puras são as
criaturas, tanto mais se acercam aos espíritos celestiais; pelo
contrário, quanto pior, mais desonesto e torpe é alguém, tanto mais se
afasta de Deus e dos Anjos, os quais, por sua vez, se afastam dele, que
se converteu num objeto de náusea e repugnância.
Passou-me então a terceira lista.
Toma-a – disse – abre-a e
aproveita-te dela para o bem de teus jovens; mas não te esqueças do
ramalhete que te dei; que todos o tenham e conservem.
Isto dito, e depois de entregar-me a lista,
retirou-se apressadamente, em meio de seus companheiros, quase como se
estivesse fugindo de algo.
Abri então a lista; não vi nenhum nome, mas no mesmo
instante me foram apresentados de chofre todos os indivíduos nela
escritos, como se na realidade eu visse suas pessoas. Com quanta
tristeza os contemplei a todos! A maior parte eu conhecia e pertencem ao
Oratório e aos outros colégios. Vi muitos que parecem bons, que parecem
até os melhores dentre os companheiros, e sem embargo não o são!
Mas, no ato de abrir a folha, espalhou-se em redor um
mau cheiro tão insuportável, que imediatamente me vi assaltado por
terrível dor de cabeça e por tais ânsias de vômito que me parecia estar
morrendo. Obscureceu-se entretanto o ar, e nisso desapareceu a visão,
nada mais eu vendo do maravilhoso espetáculo. Ao mesmo tempo
ziguezagueou um raio e ressoou um trovão no espaço, tão forte e terrível
que acordei sobressaltado.
O mau odor penetrou nas paredes e infiltrou-se em
minhas vestes de tal forma que, muitos dias depois, ainda me parecia
sentir a pestilência. De tal modo é fétido ante os olhos de Deus até
mesmo o nome do pecador! Agora mesmo, só de recordar aquele mau odor me
vêm calafrios, sinto-me sufocado e se me revolve o estômago.
Em Lanzo, onde me achava, comecei a interrogar de cá e
de lá alguns rapazes, e pude certificar-me de que o sonho não me havia
enganado. É, pois, uma graça do Senhor, que me deu a conhecer o estado
de alma de cada um de vós; mas disso nada direi em público. Muitas
outras explicações ainda haveria que dar, mas reservo-as para uma outra
noite. Por ora, só me resta desejar-vos uma boa noite.
O fato de, no sonho, ter visto como maus certos
jovens que eram geralmente considerados os melhores da casa, fez com que
Dom Bosco de início suspeitasse ter sido apenas uma ilusão. Foi por
isso que, prudente mente, começou chamando alguns para uma conversa
particular; queria certificar-se bem da natureza do sonho. Por esse
mesmo motivo, não se apressou a narrar logo o sonho, mas esperou uns 15
dias. Só falou quando se sentiu bem seguro de que a coisa provinha mesmo
do Alto.
O tempo ainda haveria de lhe trazer outras confirmações das profecias ouvidas.
A primeira delas, e a mais importante, dizia respeito
ao número de seus filhos que morreriam no ano de 1877, discriminados em
dois grupos: seis mais dois. Ora, naquele ano efetivamente os registros
do Oratório assinalaram com a costumeira cruz, sinal de falecimento, os
nomes de seis meninos e dois clérigos.
A segunda profecia anunciava para a Sociedade
Salesiana, em 1877, uma aurora tão esplêndida que faria luz sobre os
quatro Cantos do mundo. Com efeito, naquele ano fizeram entrada, no
panorama da Igreja, a associação dos Cooperadores Salesianos e o Boletim
Salesiano. Eram duas instituições que haveriam de levar até os confins
da Terra o conhecimento e a prática do espírito de Dom Bosco.
A terceira profecia dizia respeito ao final não
distante da vida de Pio IX. Este efetivamente deixou de viver catorze
meses decorridos do sonho.
A última profecia foi amarga para Dom Bosco: "Oh! se
soubesses por quantas vicissitudes terás ainda que passar!" Realmente,
nos onze anos e dois meses que ainda durou sua vida, lutas, fadigas e
sacrifícios não lhe deram trégua até o último momento.
A delegacia de polícia de Borgo Dora era, quando do
sonho, regida por um senhor que tinha diversos conhecidos no Oratório.
Tendo ouvido narrar o sonho, ficou muito impressionado com a previsão
das oito mortes. Durante todo o ano de 1877 observou com atenção se a
previsão realmente se cumpria. Quando soube que no último dia do ano se
realizara o oitavo óbito, resolveu abandonar o mundo, fez-se salesiano e
trabalhou muito, na Itália e também na América. Foi o Padre Angelo
Piccono, cujo nome permanece ainda na memória de muitos.
Fonte: www.cot.org.br
Saiba como contribuir com nosso site:
1) - O vídeo não abre? O arquivo não baixa? Existe algum erro neste artigo? Clique aqui!
2) - Receba os artigos do nosso site em seu e-mail. Cadastre-se Aqui é grátis!
3) - Ajude nossos irmãos a crescerem na fé, envie seu artigo, testemunho, foto ou curiosidade. Envie por Aqui!
4) - Ajude a manter este site no ar, para fazer doações Clique aqui!
Nenhum comentário:
Postar um comentário